Insolvência Civil: uma alternativa para a inadimplência crônica

Em tempos de crise há de se prestigiar os sistemas jurídicos de solução de conflitos e não a disseminação dos conflitos. Vivemos hoje o maior desafio sanitário e econômico do Século XXI. A pandemia do coronavírus surpreendeu a todos, atingindo as relações sociais, econômicas e jurídicas da sociedade moderna.

As instituições agiram e agem rápido para promover segurança jurídica aos cidadãos. Recentemente vimos a publicação da Lei 14.010/2020, que cria o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET).

Somado às modificações legais realizadas nos últimos meses buscando a prevenção de conflitos e a preservação da segurança jurídica, há de se destacar que nosso sistema jurídico já dispõe de inúmeros institutos e instrumentos que podem acelerar a pacificação social.

Entre os institutos existentes, destaco um instrumento voltado especialmente para a pessoa física que se encontra em inadimplência crônica. Trata-se da Insolvência Civil, muitas vezes chamada de “falência da pessoa física”. Mais que um regime de especial de pagamento de débitos privados, esse instituto é capaz de preservar de maneira homogênea os interesses dos credores e garantir ao devedor a reabilitação para a vida civil no período de 05 anos, interesses que se mostrarão cada vez mais urgentes a partir de agora.

Portanto, apresento no presente estudo a análise desse instituto que poderá ser poderosa ferramenta de saída da crise econômica iminente.

Conceito
A Insolvência Civil é o instituto brasileiro de execução por concurso universal que visa sanar a situação de inadimplência crônica da pessoa física ou da pessoa jurídica com natureza de sociedade civil, a exemplo das cooperativas, associações, fundações, etc., o que não se confunde com falência[1].

Sua aplicação ocorre quando a dívida objeto de título executivo ultrapassa os bens do devedor (art. 955 do CC e art. 748 do CPC/1973). Portanto, seu pressuposto é apenas que o título judicial ou extrajudicial supere o patrimônio do devedor.

A insolvência pode ser aparente, quando as dívidas superam os bens do devedor, ou presumida, nas hipóteses de não existirem bens livres ou desembaraçados para nomear à penhora.

A Insolvência Civil é regulamentada pelo Código Civil (arts. 955 a 965) e pelo Código de Processo Civil de 1973 (arts. 748-786-A), conforme art. 1.052 do Código de Processo Civil de 2015.

Hipóteses de cabimento
A Insolvência Civil pode ser requerida tanto pelo credor como pelo próprio devedor.

Como dito acima, a dívida tem que estar lastreada em título executivo. Ou seja, apenas nos casos em que o título (judicial ou extrajudicial) supera os bens do devedor é que se pode requerer a Insolvência Civil.

Por fim, não é necessário que o devedor possua bens para se declarar a insolvência[2], uma vez que seu objeto, em último, é possibilitar a reabilitação da vida civil do devedor. No mais, não há necessidade de pluralidade de credores, pois, a teor da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o concurso de credores é a consequência da insolvência civil e não a sua causa[3].

Como pedir
A Insolvência Civil pode ser requerida tanto pelo credor como pelo devedor (autoinsolvência). O reconhecimento da insolvência exige a realização de ação judicial declaratória específica para esse fim, ou seja, só é possível com a assistência de advogado.

Quando a ação é proposta pelo credor, este deve apresentar o pedido acompanhado do respectivo título judicial ou extrajudicial. Caso já exista execução judicial de tais títulos, o credor será obrigado a desistir previamente das ações de execução ou cumprimento de sentença existentes contra o devedor[4].

Importante destacar que se o mesmo credor possui ação de cobrança em processo de conhecimento pendente de trânsito em julgado, esta não estará prejudicada e pode prosseguir normalmente. Como dito, a insolvência é voltada apenas para pagamento de dívida lastreada em título executivo judicial ou extrajudicial[5].

Na hipótese de o devedor optar por propor a ação declaratória de insolvência (autoinsolvência), caberá a ele apresentar a relação de todos os credores, com indicação do endereço de cada um e os valores dos títulos. Também deve apresentar rol de todos os seus bens, com a estimativa de valor de cada um, e explicar as causas de insolvência.

Dívidas excluídas da insolvência
As dívidas fiscais com a Fazenda Pública não entram no pedido de insolvência, por força do art. 187 do CTN. Portanto, ao devedor que possuir contra si apenas execuções fiscais não será possível realizar o pedido de autoinsolvência.

Por fim, as cobranças judiciais em processo de conhecimento pendentes de trânsito em julgado também não serão objeto da insolvência até que sejam encerradas definitivamente, quando a decisão passará a ser título executivo.

Consequências
Recebido o pedido pelo magistrado e declarada a insolvência, todos os títulos executivos contra o devedor serão atraídos para a Ação de Insolvência, inclusive aqueles não vencidos e não executados. Logo, admitida a ação ocorre:

o vencimento antecipado dos títulos executivos, com a suspensão dos juros inclusive dos débitos fiscais;
todos os bens do devedor suscetíveis de penhora passam a integrar a ação, inclusive aqueles adquiridos no curso do processo; e
todas as execuções pendentes ou futuras contra o devedor devem ser redirecionadas para a ação de insolvência, com exceção das execuções fiscais.
Com o reconhecimento da insolvência o devedor perde o direito de administrar seus bens, que passam a ser geridos pelo maior credor. Todos os bens do devedor passam a ser denominados “massa” do insolvente e o maior credor passará a ser o “administrador da massa”. Caberá ao administrador arrecadar todos os bens do devedor e representar o devedor judicialmente e extrajudicialmente.

Ao cartório judicial caberá ordenar a lista de credores conforme a prioridade do crédito e intimar os credores no prazo de 20 dias. Os credores poderão impugnar a lista no mesmo prazo.

Finalizada a lista, os bens, se existentes, serão objeto de leilão e os valores partilhados entre os credores. Se não existir saldo para liquidação ou a liquidação da massa ocorra sem que tenha sido efetuado o pagamento integral a todos os credores, qualquer bem adquirido pelo devedor pelo prazo de 05 anos do trânsito em julgado da sentença que encerrar o processo de insolvência deverá ser apresentado para liquidação da massa.

Toda e qualquer execução de título constituído em período anterior ao processo de insolvência ou no seu curso só poderá ser promovida no juízo da ação de insolvência. Ao credor retardatário, que por qualquer motivo não promoveu sua habilitação no prazo de 20 dias da publicação de edital de intimação dos credores, é assegurado o direito de disputar sua cota parte por ação direta contra a massa, desde que antes do rateio final.

Ultrapassado o prazo de 05 anos do trânsito em julgado da sentença que encerrou o processo de insolvência, o devedor será considerado reabilitado a praticar todos os atos da vida civil, livre de qualquer dívida.

Conclusão
O aumento na judicialização de conflitos será um caminho inevitável em razão da atual crise. Os jornais têm informado sobre o crescente número de pedidos de recuperação judicial e falência das micro e pequenas empresas e também de empresas de grande porte. No entanto, à pessoa física poucas alternativas são apresentadas.

A insolvência civil, ainda hoje pouco utilizada, se mostra alternativa para concretização dos interesses dos credores e veículo de recuperação da vida civil dos devedores. É instrumento centralizador de conflitos, que une credores e devedor na busca da satisfação do crédito, com tratamento isonômico.

Os advogados, indispensáveis à administração da justiça, devem estar atentos e devem buscar alternativas para a superação desse momento. Nosso sistema jurídico possui inúmeras ferramentas capazes de dissipar e arrefecer os conflitos que estão por vir. Como proposto, a Insolvência Civil presente em nosso sistema desde 1973 merece ser melhor explorada.
Fonte JOTA . Maurício Pereira Cabral

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