A inevitável – e esperada – atuação do Judiciário nos conflitos de interesse causados pela crise do novo coronavírus

Por: Eduardo Pires

Enquanto algumas medidas econômicas vem sendo lançadas para injetar dinheiro e evitar o colapso econômico decorrente da crise do novo coronavírus, como dar proteção social aos mais pobres (que constituem a maioria da população), de outro lado, há uma série de pequenas e médias empresas que, embora não possam ser classificadas na categoria dos vulneráveis que deverão receber proteção financeira do Estado, também não se confundem com as grandes corporações que, de modo geral, detém maiores condições de subsistência.

E é exatamente esse grupo de pequenas e médias empresas, para quem, até o presente momento, se anunciou apenas a concessão de linha de financiamento subsidiada em parte pelo Tesouro, para pagamento de até 2 meses de folha salarial, que deverá ser assegurado o amplo, irrestrito e rápido acesso – e resposta – pelo Judiciário.

É que na medida em que o faturamento dessas empresas viu-se completamente prejudicado, não só por conta das (necessárias) quarentenas impostas pelos poderes públicos, mas também pela insegurança que aplacou o próprio mercado consumidor, é evidente que não terão elas quaisquer condições de cumprir as obrigações assumidas antes da crise, ficando sujeitas, num primeiro momento, às consequências do inadimplemento.

Frente a esse cenário, já afloram discussões sobre uma lei especial para regular os conflitos de interesse privados que certamente surgirão, tendo sido proposto pelo Senador Antonio Anastasia o PL 1179/2020 que dispõe sobre um regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado enquanto perdurarem os efeitos da pandemia do coronavírus.

Em linhas gerais, o projeto estabelece que:

  • Os prazos prescricionais e decadenciais serão impedidos ou suspensos;
  • Atos associativos, como reuniões e assembleias, poderão ser realizadas por meio remoto;
  • Os efeitos da pandemia equivalem ao caso fortuito ou de força maior, mas não se aproveitam a obrigações vencidas antes do reconhecimento da pandemia;
  • Os despejos de imóveis ficam suspensos até 31 de dezembro de 2020, mas não se liberam os inquilinos de pagar os alugueis, embora se possa diferir seu adimplemento em caso de perda de renda por desemprego. É possível o locador retomar o imóvel para uso próprio ou de seus familiares;
  • Flexibilizam-se regras de contratos agrários, mas se impede a contagem de tempo para usucapião durante a pandemia;
  • Criam-se restrições temporárias de acesso e de obras em condomínios edilícios, ao tempo em que se admite a realização de assembleias virtuais;
  • Assembleias e reuniões em sociedades comerciais podem ser virtuais. Os dividendos e outros proventos poderão ser antecipados;
  • Algumas sanções por práticas anticoncorrenciais ficam suspensas, a fim de atender às necessidades da escassez de serviços e produtos. Cria-se um parâmetro para que, no futuro, certas práticas sejam desconsideradas como ilícitas em razão da natureza crítica do período da pandemia;
  • Regras específicas são adotadas emergencialmente para prisão civil de devedor de alimentos e para início do prazo de abertura e de conclusão de inventários.
  • A vigência da Lei Geral de Proteção de Dados é postergada por mais 18 meses.

Valendo-se do mesmo espírito, o plenário do CNJ aprovou, no dia 31/03, uma recomendação (sem efeito vinculante) que orienta juízes a flexibilizarem o cumprimento de plano de recuperação judicial por empresas em virtude da pandemia do novo cornavírus.

As medidas constantes na recomendação, de modo geral, são:

  • Priorizar a análise e decisão sobre levantamento de valores em favor dos credores ou empresas recuperandas;
  • Suspender Assembleias Gerais de Credores presenciais;
  • Autorizar a apresentação de plano de recuperação modificativo quando comprovada a diminuição na capacidade de cumprimento das obrigações em decorrência da pandemia;
  • Determinar aos administradores judiciais que continuem a promover a fiscalização das atividades das empresas recuperandas de forma virtual ou remota;
  • Avaliar com cautela o deferimento de medidas de urgência, despejo por falta de pagamento e atos executivos de natureza patrimonial em ações judiciais que demandem obrigações inadimplidas durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Poder Legislativo.

O que se vê, portanto, é uma movimentação dos poderes públicos com objetivo de editar normas e marcos legais – ou mesmo recomendações – que servirão de norte aos órgãos judiciários para o enfrentamento dos milhões de processos que deverão abarrotar suas estruturas nos próximos meses e que, na maioria das vezes, serão o único instrumento que poderá assegurar às empresas e indivíduos a revisão (até mesmo desobrigação) de dívidas e compromissos assumidos em decorrência dos exercício de suas respectivas atividades.

Todavia, de nada adiantará criar um acervo de normas para tratamento dos efeitos da crise caso as estruturas judiciárias não estejam preparadas para analisarem, com a rapidez que a situação impõe, os pedidos que lhes serão dirigidos a partir de então.

Nunca foi tão cara a garantia da duração razoável do processo (art. 5º, inciso LXXVIII da Constituição Federal e art. 4º do Código de Processo Civil) que, em tempos de crise, deverá ser ressignificada sob pena se fazer letra morta.

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